terça-feira, 26 de abril de 2011

Foleiro

As palavras podem ser facas ou flores. Quando proferidas, esvaem-se no ar e, se não forem gravadas, morrem. Só atacam o baixo-ventre de quem as escuta, se forem facas, ou tocam o rosto corado de quem as sente, se forem flores.


Aquando das comemorações dos 37 anos do 25 de Abril, o deputado José Lello chamou ao Presidente da República “foleiro”, por este não o ter convidado a si e aos seus colegas de profissão para os festejos. Espetou-lhe uma faca na barriga ou atirou-lhe uma flor?


Antes da resposta, os contornos. A adjetivação não ocorreu numa conversa informal. Se José Lello estivesse a falar com amigos do seu partido, motivaria uma gargalhada geral porque tocava o jocoso, a graça espontânea, própria da caricatura. O informal atrai a descontração, a gíria e a ingenuidade das pessoas, que, por vezes, por quererem ser o centro da conversa [forma de ganhar algum poder], chamam a piada à mesa e fazem o brinde.


Mas José Lello estava a escrever no facebook. A palavra foi escrita. Mesmo pretensamente dirigida a um amigo, ela foi escrita. O deputado registou-a: f-o-l-e-i-r-o. E depois? Não pode? Pode, mas a escrita é formal, é matéria. Não se apaga no ar. Há sempre forma de a reenviar, de a fazer circular de quiosque em quiosque, de ecrã a ecrã, assim, grafada com carateres fixos. O círculo de amigos deixa de o ser. Passa a quadrado, com inimigos nos ângulos.


É certo que todos nós cometemos gafes desta natureza, e elas acabam por se desvanecer no tempo, quando não passam a borrão. Mas aqui o borrão aconteceu.


José Lello é chamado a emendar o erro. Ao invés de o corrigir, mancha a folha. Sim, o popularucho, o amigalhaço inerente a “foleiro” materializou-se porque a circunstância não chamava a “linguagem mais parlamentar”, o “politiquês”, cuja expressão certeira seria “o presidente não foi suficientemente abrangente”. Rica rima esta, a que é usada na poesia do parlamento, cheia daquela musicalidade tão afinada para os ouvidos do cidadão.


Respondendo agora à pergunta feita: foi a palavra “foleiro” uma facada ou uma rosa? Uma facada, óbvio, mas na barriga de José Lello, mesmo antes de os jornalistas a terem propagado pelo ar e de ser captada pelo aparelho auditivo dos ouvintes dos canais de televisão e estações da rádio. Porque a melhor poesia não tem rima pobre, a querer parecer rica. Ou se é rico por dentro ou se é sempre borrão.

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