Num ano em que se fala cada vez mais na fórmula mágica computador + quadros interativos para as escolas e respetivas salas de aula, eu falo na importância dos apontamentos e sínteses na sala de aula.
É do conhecimento comum que dominar as novas tecnologias é imprescindível nos dias que correm, para se entrar no mundo de trabalho. A escola tem, pois, de responder a desafios muito exigentes e diversos, desenvolvendo nos seus alunos as competências necessárias para que encontrem emprego mais tarde, num processo de renovação de doutrinas e métodos capazes de ligar a escola às necessidades do mundo, tal como ele se apresenta. São bem-vindos os computadores para todos (com internet) e cada quadro interativo deve ser um motivo de orgulho para a escola que o adquiriu.
No entanto, o computador ou o quadro interativo não desenvolvem, por si só, as operações cognitivas complexas que são exigidas à actividade da escrita, se os seus utilizadores se limitarem a copiar, colar, retirar, cortar, reconfigurar, enviar, passar…
No Programa de Português - 10.º, 11.º e 12.º (ME 2001-2002), das oitos finalidades apresentadas para a disciplina, destaco a quinta:
• Proporcionar o desenvolvimento de capacidades ao nível da pesquisa, organização, tratamento e gestão de informação, nomeadamente através do recurso às tecnologias de Informação e Comunicação.
O advérbio nomeadamente marca a diferença: o computador (+internet) é um dos recursos possíveis para o trabalho de pesquisa, tratamento e gestão de informação. Mas há outras metodologias a serem sugeridas/utilizadas pelo professor.
Nas sociedades desenvolvidas de hoje, a escrita vinga como um processo autónomo e automatizado, ligado a um mundo técnico sofisticado, de onde tem resultado um vasto número de meios técnicos de comunicação verbal escrita e de profissionais que procuram dominá-lo. Por um lado, e de acordo com Jacques Anis (Texte et Ordinateur – L’Écriture Réinventée? Paris, Bruxelles, De Boeck Université, 1998), só recentemente a arte de grafar a palavra começou a ser reinventada e os esforços convergem para a criação de uma ciência da escrita que descreva as estruturas específicas deste sistema e a forma como os escreventes as utilizam. Por outro, o peso cultural da escrita (no sentido de símbolo e instrumento de civilização, instrução, saber) não desapareceu.
Sabemos quantos empregos dependem do conhecimento e uso da escrita por qualquer utente. Sabemos que o emprego é uma realidade social extremamente hierarquizada e hierarquizadora. Sabemos que todos têm o direito à educação e, dentro deste sistema, à aprendizagem das estruturas da língua escrita, como forma de inserção social, pois a aprendizagem da língua escrita processa-se de forma artificial, ao contrário da fala que é natural, como tão claramente exprimiu Fernando Pessoa (A Língua Portuguesa. Edição de Luísa Madeiros. Lisboa, Assírio & Alvim, 1997: 19):
“A palavra falada é um fenómeno natural: a palavra escrita é um fenómeno cultural. O homem natural pode viver perfeitamente sem saber ler nem escrever. Não o pode o homem a que chamamos civilizado: por isso, como disse, a palavra escrita é um fenómeno cultural, não de natureza mas de civilização, da qual a cultura é a essência e o esteio.”
Por isso, a escola tem de ensinar a escrever, o que exige muito ao professor e ao aluno. Este é o sujeito de um processo de ensino-aprendizagem cujo papel, para lá do mero utilizador das novas tecnologias, é o do produtor-escrevente.
As actividades de escrita podem ser postas em prática em todas as aulas (de todas as disciplinas) e por todos os professores. Mesmo em salas menos apetrechadas de materiais audiovisuais.
Dou dois exemplos: qualquer professor pode ensinar a escrever, na sala de aula, breves textos designados apontamentos. São anotações escritas das ideias, explicações, informações que vão resultando da aula e que funcionam como auxiliares de memória. Feitas a partir de outro texto oral ou escrito (no caso das aulas é oral), permitem nova utilização, daí que tenham de ser legíveis e perceptíveis. Envolvem várias competências, como a compreensão oral (o que é dito na sala de aula), a leitura (do que é registado) e a escrita.
Para os apontamentos, há que ensinar a considerar o espaço-folha. A escrita configura-se espacial e materialmente num espaço gráfico que, antes de ser verbal, é visual. Destaco o papel como espaço da escrita, visto que ainda é o suporte mais utilizado na sala de aula (mesmo em correlação com o écran em determinadas situações). A colocação do texto na página é uma forma de pontuar o texto, que exige um conjunto de técnicas visuais de organização e apresentação dos apontamentos, que compreendem a disposição dos brancos a todos os níveis, as variantes gráficas (maiúsculas, minúsculas), a disposição das linhas (centradas, alinhadas à direita…) e a integração de artifícios gráficos (setas, asteriscos…).
Nos apontamentos, os esquemas (feitos por meio de alíneas, chavetas…), os quadros, as tabelas, aparecem a par com o texto linear. É necessário treinar o aluno para a gestão que deve fazer entre as diferentes formas de apresentação de texto no mesmo espaço-folha.
Para os apontamentos, há ainda que ensinar o aluno a produzir sínteses. Ao seleccionar informação, o aluno terá de separar o acessório do essencial e considerar apenas este. Tem de aplicar regras de selecção, de generalização, entre outras, que exigem treino.
Copiar, retirar, cortar, reconfigurar, enviar, passar… são, pois, actividades que não desenvolvem as operações cognitivas complexas exigidas à actividade da escrita. Esta apoia-se nos meios tecnológicos, mas não se esgota nestes. Para actividades como tirar apontamentos e fazer sínteses, a realizar na sala de aula, basta caneta e papel. Para lá da tecnologia, há que ajudar o aluno a aprender a escrever – a criar e a recriar textos – o que decorre de uma pedagogia da escrita eficaz e da máxima que alguém sabiamente escreveu, num qualquer papel - só se aprende a escrever escrevendo.
22/09/2008
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
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