O sonho é uma constante da vida. Afirmo-o pela minha voz mas retomando a voz de um grande poeta.
As crianças revelam os seus sonhos de uma forma espontânea, que a todos faz sorrir: quero ser bombeiro, sonho ser jogador do Benfica, quero ser rico, vou ser astronauta, gostava de ter cinco filhos. Ao quando for grande quero ser... sorriem pais, avós, irmão, professores. Ninguém critica, ninguém leva a mal, ninguém leva a sério. É tudo tão fácil -
As crianças revelam os seus sonhos de uma forma espontânea, que a todos faz sorrir: quero ser bombeiro, sonho ser jogador do Benfica, quero ser rico, vou ser astronauta, gostava de ter cinco filhos. Ao quando for grande quero ser... sorriem pais, avós, irmão, professores. Ninguém critica, ninguém leva a mal, ninguém leva a sério. É tudo tão fácil -
“Quando as crianças brincam” (Fernando Pessoa)
Todos os sonhos são possíveis e as crianças que os têm acreditam que eles se vão realizar. Não há barreiras nem entraves porque, de facto, dizer eu quero ser bombeiro equivale a dizer eu tenho um sonho: ser bombeiro – e vou realizá-lo. Para os pais, por exemplo, e como a criança é criança, tudo não passa de intenções divertidas, que devem ser avaliadas no futuro, é certo, a não ser que ela diga qualquer coisa como quero ser médico.
“As pessoas crescidas disseram que era preferível eu deixar-me de jibóias abertas e jibóias fechadas e dedicar-me à geografia, à história, à matemática e à gramática. E assim abandonei, aos seis anos de idade, uma magnífica carreira de pintor. Ficara completamente abalado com o insucesso do meu desenho número 1 e do meu desenho número 2. As pessoas crescidas nunca entendem nada sozinhas e uma criança acaba por se cansar de lhes estar sempre a explicar tudo.
Escolhi, portanto, outra profissão e aprendi a pilotar. [Antoine de Saint-Exupéry (2005). O Principezinho]
Na fase do armário, tudo se complica. Os sonhos são escondidos dos pais e dos outros por vários motivos: ou porque o adolescente anda desnorteado; ou porque o adolescente sabe o que quer mas não quer lá chegar; ou porque o adolescente tem o sonho que os outros não permitem que ele tenha. À simples equação quero viajar pelo mundo ou quero ser artista plástico (ou autor de banda desenhada, professor, baterista...) é dada a resposta peremtória tens de tirar o curso certo para ganhares dinheiro e seres alguém na vida. E o adolescente volta para o armário.
Em adultos, corremos o risco de sermos considerados lunáticos, ridículos, ambiciosos ou outra coisa qualquer, quando revelamos os nossos sonhos. Ninguém nos questiona sobre eles; passam despercebidos nos dias frenéticos em que vivemos; não os elaboramos; não os registamos; não os pensamos; não temos tempo para eles. Por isso, os sonhos ficam por revelar. Já ninguém pede:
Primeira [veladora]. - Contae-nos agora o que foi que sonhastes á beira-mar...
Segunda [veladora]. – Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia alli... Como elle não tinha meio de voltar á pátria, e cada vez que se lembrava d’ella soffria, poz-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; poz-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de paiz, com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora elle construía em sonho esta falsa pátria, e elle nunca deixava de sonhar, de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas, e não reparando nas estrellas. [Fernando Pessoa (1913). O Marinheiro (excerto)]
Quando, numa manhã deste mês de Outubro, revelei o meu grande sonho a uma turma do 12.º ano, fez-se silêncio absoluto na sala de aula. Nunca os alunos ficaram tão sossegados...
Em adultos, corremos o risco de sermos considerados lunáticos, ridículos, ambiciosos ou outra coisa qualquer, quando revelamos os nossos sonhos. Ninguém nos questiona sobre eles; passam despercebidos nos dias frenéticos em que vivemos; não os elaboramos; não os registamos; não os pensamos; não temos tempo para eles. Por isso, os sonhos ficam por revelar. Já ninguém pede:
Primeira [veladora]. - Contae-nos agora o que foi que sonhastes á beira-mar...
Segunda [veladora]. – Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia alli... Como elle não tinha meio de voltar á pátria, e cada vez que se lembrava d’ella soffria, poz-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; poz-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de paiz, com outras especies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se debruçarem das janelas... Cada hora elle construía em sonho esta falsa pátria, e elle nunca deixava de sonhar, de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, estendido na praia, de costas, e não reparando nas estrellas. [Fernando Pessoa (1913). O Marinheiro (excerto)]
Quando, numa manhã deste mês de Outubro, revelei o meu grande sonho a uma turma do 12.º ano, fez-se silêncio absoluto na sala de aula. Nunca os alunos ficaram tão sossegados...
Comecei a aula com um diálogo breve sobre os três princípios do sensacionismo [e assim volto a Fernando Pessoa]. Mas durante a discussão, uma aluna fez a pergunta “A stôra já escreveu livros?”, a que um colega respondeu: “Fez um manual com outra stôra”; e outra aluna acrescentou: “E um livro, que está na biblioteca”.
Respondi:
- Sim, já publiquei alguns livros didáticos.
Vinte e sete alunos me olharam curiosos, à espera de revelações da minha parte, de comentários, de descrições sobre todo o processo de escrever livros, de publicar, de estar do lado da produção e não da receção. Mas eu simplesmente disse:
- O meu grande sonho é ser escritora. Gosto de dar aulas... mas gosto muito de escrever.
Não é necessário dizer que um novo silêncio quebrou o diálogo. Apressada, voltei à aula (de onde, nunca, de resto, saí) e à página do manual aberta há algum tempo; leu-se o poema “Autopsicografia”, de Fernando Pessoa, explicitou-se o verso “O poeta é um fingidor” e o diálogo animou-se e intensificou-se. Interpretemos, pois, o poema.
[O poeta é um artesão que representa a dor que deveras sente.]
Por entre a teoria do fingimento poético, iam timidamente surgindo mais perguntas ou frases sincopadas, à espera que eu as completasse:
- Mas... escrever livros, mesmos livros?
- Sim, um romance, por exemplo. – Acrescentei.
Lê-se e relê-se devagar o poema de Fernando Pessoa.
- E a stora está a pensar...
- Se eu publicar um romance, vocês estão convidados para o lançamento.
Segue-se um momento de manifestação de entusiasmo, com risos e comentários mais livres, como se a barreira criada no momento da revelação do meu grande sonho se quebrasse. Aqueles jovens sentiram que os adultos também têm sonhos e que têm coragem para os revelar.
Fernando Pessoa tinha um sonho (ou sonhos). E disse-o aos leitores. E cumpriu a obra. Eu tenho um sonho e disse-o aos meus alunos. Se não o cumprir, que fique a lição: não tenham medo de sonhar e de revelar o sonho, por mais ridículo, ambicioso, descabido que possa parecer. E lutem por ele.
05/10/2008
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
05/10/2008
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
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