Com o aproximar do Natal, há vontade de acender a lareira e de ouvir histórias, ao som da neve a cair. As histórias têm de ser histórias de encantar e a neve branca e fofa, magnânime, vinda do cristalino céu… Mas, infelizmente, a neve não cai muito em Portugal. E porque não cai, há o silêncio…
Vamos, então, às histórias! São duas, e aproximam-se na força mas não na forma.
Sempre que a época natalícia anuncia a sua chegada, recordo sinais que me ficaram de outros anos, como as ceias de Natal, os rostos corados dos amigos e familiares, os cânticos, as lembranças que se trocam. Mas este ano, e ainda esta semana, veio-me à lembrança As Histórias do Avozinho, uma coleção que me deram em criança e que li e reli até à exaustão. E de entre as várias histórias, lembro-me em especial de uma – “A boneca partida”. Para a poder recontar, terei de procurar na minha memória as imagens que acompanhavam o texto. São elas preciosos fotogramas que fixei e que me permitem hoje desenrolar o filme, de que vou dar conta.
Era uma vez um homem, sentado à beira de um rio.
O seu nome é Jesus. Tem as mãos unidas no colo, olhar distante, apresenta uma imensa serenidade. Por cima da sua cabeça, há uma luz branca e a folhagem de uma árvore. Está sentado numa pedra, poisada num chão de areia. Aliás, todo o cenário tem a cor da areia.
De repente, este quadro de ouro é substituído por uma imagem negra e sombria, na qual se vê Jesus com uma coroa de espinhos na cabeça e uma cruz sobre o ombro. Os maus ladeiam-no tragicamente. Seria esta uma imagem que Jesus recordou ou previu, sentado na pedra, junto à árvore?
Recordo imediatamente outro desenho, de outra página: uma criança, vestida com trajes compridos, descalça, com um manto azul sobre a cabeça, à semelhança de Nossa Senhora. Caminha junto ao rio azul e traz na mão uma boneca com uma perna partida. Coitada da menina!
Entretanto, encontra Jesus e explica-lhe que a boneca caiu ao chão e partiu-se. É da cor do barro, logo é feita de barro. “Só tenho esta boneca, que me deu o meu pai”, deve ter dito. “E o teu pai não a pode refazer?”
"O meu pai morreu”.
Vê-se, felizmente, as mãos de Jesus a consertarem a boneca. Umas mãos ligeiramente enrugadas do trabalho, mãos de pai do mundo, mãos ternurentas. Observo-as com atenção e sinto-me aliviada. Observo-as atentamente, tal como Jesus me observa noutra página, cheio de luz, com os seus olhos azuis postos em mim (pequena leitora), com o cabelo cor de cobre. Comove-me a forma como trata as crianças, a menina da história e eu, menina verdadeira. Tão fortes são as suas mãos e o seu olhar, tão grande é a mensagem de esperança e de fé que nos faculta.
A boneca partida foi consertada.
Os tons quentes do céu e da terra, as formas arredondadas das pedras que rodeiam os pés da menina, a afastar-se de Jesus com a mensagem no coração e a boneca nas mãos, e os troncos torneados das árvores que acompanham Jesus, ao ajoelhar-se nas ervas, revelam a essência da vida.
Mas nas páginas seguintes mostram-se aos meus olhos coisas horríveis: de um lado, numa figura escura e vazia, Jesus morto, caído da cruz, ao colo de uma mulher; do outro, a boneca partida de novo, desta vez sem cabeça. De Jesus nada mais de vê – foi para o céu, para nos proteger… Da menina, recordo a sua postura a rezar, na sua cama, de noite… Da boneca, relembro a sua figura outra vez inteira, em cima de uma mesa, cheia de luz.
No mesmo dia em que me veio à memória esta história maravilhosa, leio uma outra, não tão maravilhosa, e passo a explicar porquê.
Trata-se de um texto de um professor de Filosofia (professor há quase 26 anos), que me chegou via email, com o título “O pesadelo burocrático e a desobediência à lei”. Foi enviado por uma colega minha, também professora há muitos anos, mas de Português. Dou agora conta da história do docente, porque o texto não tem imagens.
Era uma vez um professor titular de Filosofia, que sabe que para ensinar bem os seus alunos tem de continuar a estudar, a ler e aprender. Mas vê os livros de Filosofia, que todas as semanas encomenda na Amazon ou noutras livrarias, a acumular-se sem quase ter tempo para as folhear.
Passa os dias em reuniões intermináveis para entender o sentido do terrorismo legislativo com que se tolhem e intimidam os professores. Prevê ter de inventar mais trinta e seis horas para assistir a aulas de oito colegas, além das reuniões preparatórias que tem de fazer com cada um deles e dos quilos de papelada para preencher. Acumula em casa mais de mil fotocópias sobre a avaliação, que lhe foram entregues na escola.
O professor tem o coração partido.
De repente, surge nesta história um certo Ministério da Educação, que diz que “esta” avaliação é absolutamente necessária para a qualidade do ensino e para a melhoria dos resultados. Só que esta melhoria da qualidade e dos resultados verificou-se ainda antes de o modelo de avaliação produzir qualquer efeito – exclama o professor.
É também este Ministério que deixa todos os problemas para as escolas resolverem, quando estas encontram incoerências e impasses nas instruções que envia, com o argumento de que lhes quer dar autonomia na construção dos seus instrumentos de avaliação.
E qual o fim desta história? Será uma história sem fim?
Prefiro a outra, a História do Avozinho, com final feliz. Jesus mostrou umas mãos de ouro, que consertaram sabiamente a boneca partida. E como se vai consertar o coração partido do professor de Filosofia, se as mãos do Ministério da Educação não são nem de ouro nem de prata?
Ouça-se o aproximar do Natal, das histórias e da neve.
13/11/2008
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
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