Um dia destes, quando saía da minha escola e me dirigia à escola dos meus filhos, fui abordada por uma rapariga de olhos claros. O dia permanecia frio desde manhã, embora o sol tentasse aquecer o mundo.
Já estava eu dentro do carro, quando ela me perguntou, junto à porta:
- Dá-me boleia?
E questionei eu:
- Para onde vai?
- Para a Ramalhosa.
- Sim, passo nessa localidade. Entre.
Logo entrou a rapariga, julgando eu que ela fosse uma aluna da minha escola, e, dada a sua altura e fisionomia, concluí mesmo que seria uma aluna do ensino secundário. Levava um saco de plástico branco, grande, cheio de hortaliça, que espreitava alegremente pelo topo, ficando ele completamente entalado entre as suas pernas e o tablier, ao sentar-se ao meu lado.
"Subitamente - que visão de artista!" - escreveu um dia um poeta pintor, que viu, na cesta de uma rapariga, vendedora de legumes e de frutas num bairro moderno, ossos nus nos nabos e um ventre num melão. Em pleno século XIX, e de pulsos nas ilhargas, ela percorria Lisboa, enquanto o poeta a contemplava, com um olhar evasivo, na sua saia de chita. Mas não se pense que esta sua saia, pintada de ramos e ramalhos, a acompanhar os tons e as formas dos frutos e legumes, ofuscou por completo o olhar de Cesário Verde. Ignoradas a cesta e a saia, ele pintou com realismo a rapariga: rota, pequenina, azafamada, esguedelhada, feia, descolorida nas maçãs do rosto, sem quadris na saia de ramagens… Que grita prazenteira - “Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!”.
Como eu ignorei subitamente o saco, não tive qualquer visão de artista da rapariga do século XXI a quem dei boleia. Recomecei imediatamente uma conversa com quem não apregoava as couves repolhudas, largas, nem sequer era magra ou enfezadita.
(O que me teria levado para o século XIX e para a pintura de Cesário Verde? A saia de ramagens a que associei o topónimo Ramalhosa? A evidência de uma qualquer fraqueza da rapariga que não consigo ainda determinar?)
- Em que ano estás? – perguntei-lhe.
- Já não estou a estudar.
Incrédula, por ser tão nova, perguntei-lhe se já tinha concluído o 12.º ano. Diz-me o seguinte, que gravei na memória:
- Fiz o 6.º ano e abandonei a escola. Sabe, não gostava de estudar, e depois conheci um rapaz… e, por causa dele, deixei a escola. Só pensava nele!... A senhora é professora?
-Sim.
A rapariga olhou para o seu saco e deste para as hortaliças. Ficou nervosa, intimidada, envergonhada. Parecia que queria sair do espaço onde se encontrava, apertado demais para nós as duas. Fitei-a de lado e percebi que não era tão nova como parecia. Talvez tivesse uns vinte anos, ou até mais. Pelas minhas contas, e por ter abandonado a escola no 6.º ano, constatei que a rapariga do saco não pegava num livro há quase uma década. Nos dias que correm, e de acordo com o que se apregoa por todos os lados, tive dificuldades em crer na dura realidade que acabava de conhecer. Julgava eu que já ninguém abandonava a escola no fim do 2.º ciclo. Não perguntei “Quem te roubou o mundo, menina? Quem foram os adultos que não te souberam proteger? Quem?, mas resolvi levar a conversa noutro sentido. Assim, deixei o passado de parte e ignorei todos os culpados deste crime (que decerto são muitos e cuja pena está por cumprir) e enveredei pelo caminho do futuro, o da rapariga. Pela expressão dos seus olhos, é um caminho sinuoso, cheio de curvas, arbustos e urtigas.
Já estava eu dentro do carro, quando ela me perguntou, junto à porta:
- Dá-me boleia?
E questionei eu:
- Para onde vai?
- Para a Ramalhosa.
- Sim, passo nessa localidade. Entre.
Logo entrou a rapariga, julgando eu que ela fosse uma aluna da minha escola, e, dada a sua altura e fisionomia, concluí mesmo que seria uma aluna do ensino secundário. Levava um saco de plástico branco, grande, cheio de hortaliça, que espreitava alegremente pelo topo, ficando ele completamente entalado entre as suas pernas e o tablier, ao sentar-se ao meu lado.
"Subitamente - que visão de artista!" - escreveu um dia um poeta pintor, que viu, na cesta de uma rapariga, vendedora de legumes e de frutas num bairro moderno, ossos nus nos nabos e um ventre num melão. Em pleno século XIX, e de pulsos nas ilhargas, ela percorria Lisboa, enquanto o poeta a contemplava, com um olhar evasivo, na sua saia de chita. Mas não se pense que esta sua saia, pintada de ramos e ramalhos, a acompanhar os tons e as formas dos frutos e legumes, ofuscou por completo o olhar de Cesário Verde. Ignoradas a cesta e a saia, ele pintou com realismo a rapariga: rota, pequenina, azafamada, esguedelhada, feia, descolorida nas maçãs do rosto, sem quadris na saia de ramagens… Que grita prazenteira - “Não passa mais ninguém!... Se me ajudasse?!”.
Como eu ignorei subitamente o saco, não tive qualquer visão de artista da rapariga do século XXI a quem dei boleia. Recomecei imediatamente uma conversa com quem não apregoava as couves repolhudas, largas, nem sequer era magra ou enfezadita.
(O que me teria levado para o século XIX e para a pintura de Cesário Verde? A saia de ramagens a que associei o topónimo Ramalhosa? A evidência de uma qualquer fraqueza da rapariga que não consigo ainda determinar?)
- Em que ano estás? – perguntei-lhe.
- Já não estou a estudar.
Incrédula, por ser tão nova, perguntei-lhe se já tinha concluído o 12.º ano. Diz-me o seguinte, que gravei na memória:
- Fiz o 6.º ano e abandonei a escola. Sabe, não gostava de estudar, e depois conheci um rapaz… e, por causa dele, deixei a escola. Só pensava nele!... A senhora é professora?
-Sim.
A rapariga olhou para o seu saco e deste para as hortaliças. Ficou nervosa, intimidada, envergonhada. Parecia que queria sair do espaço onde se encontrava, apertado demais para nós as duas. Fitei-a de lado e percebi que não era tão nova como parecia. Talvez tivesse uns vinte anos, ou até mais. Pelas minhas contas, e por ter abandonado a escola no 6.º ano, constatei que a rapariga do saco não pegava num livro há quase uma década. Nos dias que correm, e de acordo com o que se apregoa por todos os lados, tive dificuldades em crer na dura realidade que acabava de conhecer. Julgava eu que já ninguém abandonava a escola no fim do 2.º ciclo. Não perguntei “Quem te roubou o mundo, menina? Quem foram os adultos que não te souberam proteger? Quem?, mas resolvi levar a conversa noutro sentido. Assim, deixei o passado de parte e ignorei todos os culpados deste crime (que decerto são muitos e cuja pena está por cumprir) e enveredei pelo caminho do futuro, o da rapariga. Pela expressão dos seus olhos, é um caminho sinuoso, cheio de curvas, arbustos e urtigas.
- E já pensaste em retomar? Há cursos nocturnos, há as Novas Oportunidades…
Aí, ela desviou o rosto para o seu lado direito, longe do meu. Percebi que incomodei, que fiz doer, mas continuei, até porque estávamos quase a chegar.
- É muito importante ter um grau mínimo de escolaridade e o 6.º ano não é um grau mínimo. Com o 6.º ano podes nunca ter o emprego com que sonhas… Além disso, não podes tirar a carta, começas a ter dificuldade em ler textos que vêm no jornal, em escrever documentos de que podes precisar… É muito importante estudar pela vida fora, atualizarmo-nos…
E a minha lição de moral continuava. E pregava eu com toda a força quando chegámos ao destino e eu encostei para que a rapariga saísse. De repente, calei-me para lhe dar voz. Mas ela não tinha voz. Estava pálida, agarrada ao saco das hortaliças, e já me olhava desconfiada. Poderia ela estar a pensar: quem é esta desconhecida que me está a tentar convencer de que a escola é o caminho para a felicidade? Ou para a realização pessoal? Se eu, enquanto lá andei, não me senti nem feliz nem realizada, por que deveria continuar? Por que não podia eu procurar noutro espaço essa felicidade e essa realização? Por exemplo, na aventura, na paixão?
Porque não podias, menina. A escola é o alicerce da tua vida, o tronco que vai suportar o peso da tua essência. Só serás feliz e realizada depois de a escola te ensinar a viver no mundo onde nasceste, no tempo em que permaneces.
- Obrigada – diz. - E sai.
(A rapariga do século XIX respondeu ao poeta – “Muito obrigada! Deus lhe dê saúde!”).
Esqueci-me de lhe perguntar onde está o rapazito por quem se apaixonou perdidamente no 6.º ano. Pelos adultos que não a deixaram amar perdidamente a escola, eu já perguntei.
23/12/2008
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
Sem comentários:
Enviar um comentário