Se tivesse de dissertar sobre as palavras, as novas, as reinventadas, as antigas, as sublimes, as cruéis, as amáveis, as levianas… teria de me apoiar nas palavras de Eugénio de Andrade: “São como cristal, /as palavras. /Algumas, um punhal, /um incêndio. /Outras,/ orvalho apenas.” Ou na caracterização de Herberto Hélder – “Sangrentas são as palavras e deixam vestígios/ através do tempo.” Ou ainda na invenção de Almada Negreiros, para as palavras: “As palavras têm moda. Quando acaba a moda para umas começa a moda para outras. As que se vão embora voltam depois. Voltam sempre, e mudadas de cada vez. De cada vez mais viajadas.”
São dias e dias os que levam à reinvenção de uma palavra ou à sua queda em desuso. Os falantes são os sujeitos que mantêm as palavras vivas, que as acordam, que as desprestigiam, que as enterram, que as fazem passar à História.
Dou por mim a pensar na reinvenção das palavras quando, um dia destes, e num certo supermercado, onde os carrinhos de quatro rodas nos empurram para as prateleiras infindáveis, cheias do útil e do inútil, como em todos os super ou hipermercados, ouvi uma criança a pedir o seguinte esclarecimento à mãe:
- Mãe, somos pobres?
A interrogação é feita depois de ela ter sondado diversas vezes o seu interlocutor se podia comprar isto ou aquilo, ao que este lhe ia dizendo mecanicamente não.
O curioso na pergunta feita é o uso do adjectivo "pobres". Para mim, esta é mais uma palavra a que um dia se disse adeus e que voltou para denominar ou caracterizar pessoas que vivem junto de nós e que nós conhecemos. Dantes, "pobres" eram os mendigos, os famintos, os excluídos que pediam às portas das igrejas… Não “era”, pois, usual caracterizar como pobre um cidadão nosso vizinho, que vivesse na mesma rua, na mesma aldeia, na mesma sociedade. Porque pobres sempre houve – o da casa fria, onde chove; aquela mãe que não tem dinheiro para comprar comida; aquele pai que chega ao fim do mês sem o ordenado; aquele idoso abandonado…
Ou porque não havia pobres como há hoje ou porque ninguém se sentia confortável a usá-la, a palavra foi renegada, e tem-no sido frequentemente, penso, pelo menos no mundo dito real. Sim, porque no mundo ficcional, ela sempre existiu e existirá, circunscrita a um “Era uma vez” que nos desloca a todos para um tempo anterior que já passou e que ficou algures, no “antigamente”.
Reza, pois, a história de “Os dois compadres” que “Era uma vez dois compadres – um era muito rico e o outro muito pobre” ou a do “Candeeiro de cem luzes” que “ Houve um rapaz que era muito pobre e foi servir para a casa de um conde”, ou ainda a “História de João Grilo” que “Havia um rapaz chamado João Grilo que era muito pobrezinho” [Viale Moutinho (org. e pref.) - Contos Populares Portugueses. Europa-América, 1987 (2.ª)].
Reza, pois, a história de “Os dois compadres” que “Era uma vez dois compadres – um era muito rico e o outro muito pobre” ou a do “Candeeiro de cem luzes” que “ Houve um rapaz que era muito pobre e foi servir para a casa de um conde”, ou ainda a “História de João Grilo” que “Havia um rapaz chamado João Grilo que era muito pobrezinho” [Viale Moutinho (org. e pref.) - Contos Populares Portugueses. Europa-América, 1987 (2.ª)].
Coitadinho do menino pobrezinho, disseram nas últimas três, quatro décadas muitas crianças, após ouvirem estes contos populares. Naquele tempo era assim, mas o nosso presente é certamente melhor (pensavam). A ideia de evolução e revolução, aliada à esperança, fez com que acreditasse nisso, até ao início do segundo milénio.
Pois agora, perante a evidência dos pobres, a palavra impõe-se entre nós, e não só quando a criança pergunta
-Mãe, somos pobres?
mas também quando o jornalista apresenta, o repórter fala, o presidente condena, o professor justifica, o padre prega…
De facto, a palavra pobres, quer como nome comum, quer como adjectivo, está no texto oral ou escrito actual. Noutro dia, e num espaço de uma hora, expressões tão expressivas como os pobres, pobre, famílias pobres e há cada vez mais pobres são ditas com todas as letras, em dois programas distintos na televisão pública, mais do que uma vez. Li ainda há pouco tempo, em nota de rodapé, num noticiário televisivo o seguinte: Economia: 384 portugueses perdem emprego esta semana. Também uma reportagem da Sic Notícias dava conta, ontem, dos novos pobres da América.
Justifico ainda esta minha ideia da reinvenção da palavra, evocando uma outra situação vivida há uns anos, e que contrasta com esta evidência nos dias de hoje: participava eu na produção de cartazes de um Projecto de Solidariedade, nos quais se apelava à oferta de alimentos, vestuário e outros objetos para distribuir pelas famílias carenciadas, crianças desfavorecidas ou pessoas com dificuldades – nunca pelos pobres. A esta palavra foi várias vezes dito “não”. As sugestões dadas para os textos e frases apelativas, por todos os envolvidos no Projecto, não iam no sentido do pobre ou pobres.
Carlos Drummond de Andrade pediu: “Não deixe passar nenhuma palavra ou locução atual, pelo seu ouvido, sem a registar. Amanhã, pode precisar dela.” (Poesia e Prosa, 1992)
Carlos Drummond de Andrade pediu: “Não deixe passar nenhuma palavra ou locução atual, pelo seu ouvido, sem a registar. Amanhã, pode precisar dela.” (Poesia e Prosa, 1992)
A criança do supermercado marca-se surpreendentemente no tempo de hoje, ano de 2009, em que as circunstâncias trazem a este final de década a palavra pobre(s), não a antiga, mas a nova, a reinventada, porque com a mesma roupagem mas com nova aceção: pobre é o desempregado, o divorciado, ou o desprezado.
A resposta da mãe era constantemente não. E deve continuar a ser. Simples e mecanicamente não, que significa eu não compro, tu não compras, ele não compra, nós não compramos ou não podemos comprar, vós não comprais, eles não compram.
No fundo, o advérbio "não" vem negar o tempo de hoje
- Mãe, somos pobres?
Por detrás da ressurreição da palavra, vem o novo conceito. E quem diz não a este?
11/02/2011
Publicado no Correio da Educação
11/02/2011
Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/
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