segunda-feira, 25 de abril de 2011

Remar contra a maré

Um dia destes li um texto escrito por um aluno de um curso profissional do 10.º ano, como item de resposta aberta de composição extensa (perdoem-me a terminologia da avaliação formal dos testes de Português), que me fez pensar…

E em que pensei? Em tudo, exceto, talvez, no que devia: que o texto não respeitava o número de palavras exigido; que era constituído apenas por dois simples parágrafos, sendo um deles formado por uma única linha; que continha dois erros ortográficos (agora corrigidos); que não refletia, em termos de estruturação, a operação prévia de uma planificação produtiva; que fugia parcialmente à narrativa na primeira pessoa solicitada, em que o aluno, ele mesmo, seria narrador autodiegético que contaria uma ação real, em que tivesse resolvido um problema, um desafio.

Afinal, se não pensei no que devia, em que pensei?

A resposta é muito simples: pensei na vida e o texto teve sentido no que pensei. E, por isso, ao classificá-lo, centrei-me numa única capacidade e só esta valorizei: elaboração de um texto coerente e coeso para mim, analista-interpretante da produção escrita, em primeiro lugar, e cidadã do mundo, em segundo lugar.

Eis o texto.


Eu, formiga do meu formigueiro, caminho em busca de alimento sempre à procura do caminho mais certo para que esmagada não seja, evitando a chuva e de forma a não esvoaçar com o vento. Mas, por vezes, sou levada com a força do vento e, por mais que tente, não consigo levar o alimento para o formigueiro para que ninguém passe fome. Eu não sou heroína, faço parte de uma grande comunidade em que todos os outros são heróis, pois também me trazem comida. E sem esforço não sou formiga nem sou nada. É duro achar o caminho e ainda mais duro é o alimento pesado que levo em costas, mas nada me deita abaixo. É uma vontade de guerreira que habita em mim, uma insignificante e minúscula formiga.


Mas só ainda não percebi o porquê de aquele vento estar contra mim…



Como analista-interpretante, apropriei-me do sentido do texto; entendi-o como um ato social produzido num processo de interação verbal; percebi que algo se transferiu da esfera da vida do aluno para a minha. Interpretei-o como representação de um mundo possível. Portanto, o texto afigurou-se coeso e coerente.



À primeira vista, parece trata-se, de facto, de uma narrativa na primeira pessoa, tal como foi pedido, em que o aluno, investido do papel de formiga, caminha em busca de alimento, procurando não ser esmagado por fenómenos da natureza. Não se caracteriza como animal solitário, mas sim como íntegro membro de um formigueiro, cuja luta pela sobrevivência depende da entreajuda de toda a comunidade. É pelo esforço que manifesta a sua essência como ser vivo e abafa a sua insignificância e pequenez; é pela vontade de guerreira que assegura a sua existência.



A construção da narrativa cumpre-se baseada numa ação em que intervém uma personagem – a formiga - que se esforça para levar alimento ao formigueiro. É um sujeito que procura alcançar um objeto claramente traçado mas que tem, como oponente principal, o vento, que teima em fazê-lo recuar.



Mas, para além da simples classificação como texto narrativo, em que o protagonista conta uma ação que vive, baseada na luta constante contra o vento, entendo esta produção escrita como um verdadeiro relato de uma circunstância da vida humana, que posso sintetizar pela frase curta e concisa que passa de boca em boca: remar contra a maré. Do lado dos remos há os que trabalham, os que procuram resultados, os que estudam, os que projetam, os que empreendem, os que realizam, os que dinamizam, os que produzem, os que fabricam, os que criam, os que testam, os que arquitetam… e do lado da maré há os que desdenham, os que criticam, os que engordam, os que diferem, os que tiram, os que tiranizam, os que ensombram, os que ocultam, os que repugnam, os que destroem.



Se como analista-interpretante concebo o texto do aluno como coeso e coerente, é porque lhe captei a significação. Ao lê-lo dirigido a mim, professora e cidadã do mundo, entendo-o como metafórico e classifico-o acima de tudo como sendo muito pertinente na sociedade em que vivemos.



Os dois simples parágrafos afinal têm sentido. O último, destacado precisamente por ser o último e constituir apenas uma linha, mostra uma situação final não evidente, o que foge do género narrativo tradicional. Mas mesmo sem as macroproposições expectáveis deste género, há que perceber a produção escrita do aluno no seu contexto: o protagonismo de uma formiga que se vê num formigueiro, rodeado de ondas de vento, que não param de soprar.



A esse contexto, acrescento, também no último parágrafo desta minha apreciação, a sensibilidade, aspeto que não consta dos meus critérios de avaliação da escrita. Ou não constavam. Foi a formiga que o trouxe. Afinal, ela venceu o vento.






24/03/2009






Publicado no Correio da Educação
http://www.asa.pt/CE/

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