Conheci recentemente uma personagem que me encantou.
Chama-se “senhor Silva”, é o protagonista do livro a máquina de fazer espanhóis, de valter hugo mãe. Trata-se de um
octogenário que vai viver para o lar de terceira idade “Feliz Idade”, depois de
ter ficado viúvo e de ter tido um AVC. Os filhos, cuja preocupação nuclear é a
carreira profissional e as exigências da vida moderna, revelam-se ao leitor
como jovens incapazes de albergar a geração mais velha dentro de casa. O senhor
silva sente-o e desespera-se. Viúvo, com muitas saudades da mulher, faz o balanço
de uma vida cuja fase adulta começara no Estado Novo e se desenvolvera na
Democracia. Fora sempre dedicado aos filhos e à sua Laura, que preferia “que nunca nos arriscássemos a nada. era o
modo que tinha de fazer a sua parte pelo mundo. não bulir com alguma coisa. não
arranjar nem querer confusões. por isso não gostava que eu discutisse com ela
as coisas da política. queria que a política não fosse um assunto lá de casa.
Haveríamos de apreciar a poesia, o folclore e uns fados, haveríamos de ter
passeios aos domingos e brincar com os miúdos a crescerem e era assim a nossa
vida, sem beliscar os tubarões que nos podiam ferrar. eu, apaixonado,
enternecia-me com ela e deixava-me ficar porque lhe reconhecia prudência, uma
sabedoria que vinha da família, de colocar a família no centro das coisas. eu
deixava que a sociedade fosse apodrecendo sob aquele tecido de famílias de bem,
um mar imenso de famílias de aparências, todas numa lavagem cerebral social que
lhes punha o mundo diante dos olhos sublinhados a lápis azul” (p.156).
Foi por tudo isto que o senhor Silva denunciara à PIDE um
jovem que se escondera na sua barbearia. Foi por tudo isto que, já mais tarde,
em plena Democracia, o senhor silva, por medo de represálias dos sucessivos
governos, evitou assumir as suas convicções políticas e se foi esquivando da
intervenção pública. Mas essa timidez e falta de coragem com que viveu toda a
sua vida levam-no a sentir uma terrível frustração no “Feliz Idade” – tão
terrível que faz dó.
Nasci em 1970. Faço parte de uma geração que teve a grande
sorte de não se ter desenvolvido no Estado Novo. Assim sendo, não percebo o
receio que invade todos os que dizem “não gosto de política”, “não me interesso
por política”, “a política não me diz nada”, “não sou de qualquer partido”.
Criticar os políticos, assim como se criticam profissionais das várias áreas,
como médicos, cabeleireiros ou carteiros, quando sentimos na pele a ineficácia
dos serviços que prestam, parece-me menos mal. Mas recusar qualquer tipo de
intervenção social, que é sempre cívica e, portanto, política, é anularmos os nossos
direitos de liberdade, que as gerações passadas conquistaram com tanto custo.
A escolha é simples: ou seguir o caminho do senhor silva, um
cidadão que apenas tratou de si e dos seus e, para “evitar sujar-se”, recusou
sempre intervir e se refugiou no conforto fácil; ou seguir o caminho da
cidadania ativa, da intervenção, da participação política, da recusa da
abstenção.
Escolher o segundo caminho é, decerto, mais difícil. Mas se o senhor
Silva pudesse voltar atrás, era o que faria.
Sem comentários:
Enviar um comentário